Saturday, November 5, 2016

Leves fardos

Carrego o mundo inteiro no coração. Carrego as lembranças de um jovem que soube na pele, e não sem muita dor, o que é bullying. Carrego as memórias de uma casa cheia onde privacidade era luxo. Carrego nas paredes das recordações o dia em que mostrei para os amiguinhos da escola as fotos da minhas irmãs, ao que pude ouvir orgulhoso a resposta: "as mais lindas". Carrego o dia em que vi meu primo dormindo na cama dos meus pais, e minha mãe dizendo chorosa aos meus ouvidos na calada da noite: "sua tia descansa em Deus". Carrego as tardes assistindo animes e lendo mangás. Carrego as noites jogando RPG com meu irmão e meu primo. Carrego as brincadeiras de rua com primos e primas nas redondezas da casa dos meus avós. Carrego o dia em que li Harry Potter pela primeira vez e me apaixonei. Carrego o dia em que li O Senhor dos Anéis e me apaixonei mais ainda. Carrego o dia em que fui para a roça cedo com meu avô, e as plantações de abóbora, e retirar o leite da vaca, e a loucura de cavalgar um cavalo sem cela. Carrego também o dia em que ele teve seu primeiro AVC, e os meses que se seguiram, em que mais 3 AVCs ocorreriam até que não lhe sobrassem forças para permanecer entre nós. Carrego as aulas que faltei pra cuidar dele. Um jovem de 16 anos que banhava seu avô de 80. Como carrego essas experiências com honra e orgulho! Carrego a infância e a adolescência vividas numa comunidade religiosa em que havia tantos problemas e abusos, e ao mesmo tempo tanto amor sinceramente prestado. Carrego o dia em que passei na faculdade que queria. Não na que era o plano B, mas na que realmente queria. Nunca esquecerei: 17o lugar em Engenharia, quanta alegria! Carrego as semanas de provas, e as durezas, e as rezas com os amigos para passar em Cálculo, depois de exaustivas noites de estudo em claro. Carrego a primeira namorada, e carrego o primeiro amor. Carrego ter partido o coração e ir rente ao chão. Carrego o desejar nunca partir o coração de ninguém. Carrego seis meses de uma tristeza profunda que nunca será  esquecida. E carrego os amigos verdadeiros que ficaram lado a lado quando as trevas pareciam invencíveis. Carrego meu primeiro emprego, em que pude mostrar aos que me rodeavam que havia ali naquele posto de trabalho alguém forjado a ferro e fogo, e que não se furtou dos maiores desafios que lhe foram apresentados. Carrego o dia em que fui embora, e com muita dor, despedi-me de colegas que haviam se tornado muito mais que um time: uma quase-família. Carrego o dia em que fui fazer mestrado fora do país. Carrego os amigos, as experiências, os sofrimentos, as noites em claro revirando os livros de Termodinâmica. Carrego os dias em que, quando aluno de mestrado, fui convidado a lecionar para a graduação, pondo-me à frente de um auditório lotado de rostos e sorrisos dos quatro cantos do mundo. Carrego professores muito especiais. E amigos muito especiais. E irmãos maravilhosos. E irmãs cuidadosas. E tios e tias, de uma forma ou de outra, sempre presentes. Carrego uma avó que me ensinou a amar sem esperar nada em troca. Carrego um pai que me ensinou a ser honesto, e batalhador, e trabalhador. Carrego uma mãe que me ensinou a ser verdadeiro, e correto, e humilde. "Ao chegar num lugar, cumprimente todas as pessoas. Sempre respeite as pessoas.", ela disse muitas vezes. Já sofri e já sorri, já fui perseguido, mas sempre tive por meta nunca perseguir. Já errei, mas também já aprendi. Já quebrei, já trinquei, e já me reergui dos cacos que sobraram. A ferro e fogo e suor e lágrimas. Enfrentando um mundo de preconceitos, e olhares tortos, eu permaneço carregando as delícias de cada dia com muita disposição na mente e fé no coração. Porque cada dia, cada felicidade, cada tristeza, cada sorriso e cada lágrima valem muito a pena e são todos fardos leves e suaves se assim os quisermos encarar. E isso, ninguém pode tirar de mim ou de você. Tenha orgulho daquilo que você carrega. Use a sabedoria adquirida com as experiência ruins para construir as melhores e mais maduras experiências da vida. Creia que de cacos se pode construir castelos. Que cada momento vivido nos faz exatamente o que somos. E que, prevalecendo, continuamos em frente: com muito amor no peito e carregando o mundo no coração.




Saturday, February 27, 2016

A banalidade do mal na política brasileira

Às vezes, eu fico observando as redes sociais e o que rola na minha "linha do tempo" aqui e acolá e fico, sinceramente, preocupado.

O ufanismo nacional-desenvolvimentista (oi?) de parte da esquerda e o conspiracionismo comunista visível apenas à direita bolsonárica me parecem se encontrar num grau de abstração da realidade perverso, ao outro e à humanidade da própria alma. As militâncias, já radicalizadas pelos nervos à flor da pele, não conseguem fazer nada além de diálogos acalorados providos mais de ódio que de raciocínio.

É aquele horrendo ponto em que Paulo Henrique Amorin e Olavo de Carvalho já estão tão iguais que quase não se vê diferença.

Tudo para eles (a militância) é "mito" ou é "lixo" e "bosta" Aparentemente, não sabem utilizar palavras que passem muito desse vocabulário. Tratam o adversário como um inimigo a ser destruído e abatido, e muitas vezes dialogam com teorias e insinuações totalitárias perigosas.

Não tendo argumentos, partem para tudo o que há de mais baixo, vil e desonesto na alma humana, em busca de um ideal, ou suposto "bem maior". Seguem cindindo o país e propagando ódio numa paranoia coletiva ao melhor estilo "João Santana". Tratando pessoas como se unicamente matéria fossem. Ideias divergentes como se "burrice" fossem. Discordâncias como se "iditotice" fossem. Com todo o grau de desrespeito que a (agora mais que comprovadamente falsa) polarização nos ensinou a perpetuar.

Já fiz parte disso tudo, hoje me enojo ante a antigas atitudes.

Hannah Arendt, filósofa alemã que pra mim tem sido de grande inspiração, em suas reflexões sobre a "banalidade do mal", talvez tenha acertado em cheio quando disse que o mal, a níveis como vimos nos regimes totalitários na Europa Ocidental e em regimes comunistas no Leste Europeu, talvez encontre explicação na adesão imediata a irrestrita a ideologias sem a devida e profunda reflexão. Sendo o resultado disto uma transfiguração do ser humano num burocrata ideológico que, em nome de uma causa, poderá fazer, virtualmente, qualquer coisa.
Era esse, segundo Hannah, o argumento de Adolf Eichmann, responsável pela logística de morte do regime nazista, quando do seu julgamento em Jerusalém durante o pós-Guerra.
Para a filósofa (e teorista política), Eichmann se via apenas como um burocrata, alguém que estava cumprindo o seu papel diante de um bem maior. Para a nossa surpresa (ou não), o homem apelidado de "executor-chefe" enxergava-se apenas uma engrenagem a mais na máquina de moer carne do Nazi-fascismo.



Quanto a mim, precisei de um longo período de reflexão para entender que, na vida, e principalmente, na política, a "banalidade do mal" também existe. Ela está bem presente, todos os dias, na minha linha do tempo. Mas ela definitivamente não vale a pena.

Não vale a pena desfazer amizades por ideais divergentes.
Não vale a pena zombar das posições e ideologias democráticas das pessoas.
Não vale a pena incentivar o discurso de ódio.
Não vale a pena gastar o precioso tempo para escrever "textão furioso" na "linha do tempo" dos outros.
Não vale a pena dizer ou afirmar categoricamente coisas que não vi, não ouvi ou sobre as quais não tenho provas (e inclua aqui o "pó" do Aécio e a nuvem de fofocas que envolve as vidas de Lula/FHC).
Não vale a pena perder o senso crítico em nome de um ideal / partido / pensamento / teoria / ideologia.
Não vale a pena olhar apenas para o cisco no olho do meu irmão, deixando passar a trave no meu próprio.
Não vale a pena desmerecer, ridicularizar e escrachar alguém que votou em candidato divergente do meu.
Não vale a pena ir a páginas de políticos democratas com cujas opiniões discordo apenas para vomitar minhas frustrações.
Não vale a pena iniciar uma conversa-debate com a presunção inequívoca de que eu estou absolutamente correto.
Não vale a pena olhar a mim mesmo como baluarte portador da verdade, enquanto para o outro resta apenas a consumação de tudo aquilo que é mais burro, ignorante e descartável.

E por falar em descarte: não! Não vale a pena tratar o imaterial, o humano e todas as emoções e histórias que o envolvem como simples matéria que pode ser jogada fora. Aliás, a frase "é um lixo" me incomoda profundamente, e fico pensando que talvez fosse precisamente este o pensamento dos nazistas em relação aos judeus.

A "banalidade do mal" já nos causou problemas suficientes enquanto humanidade, provando que é capaz de provocar as situações mais terríveis quando levada às últimas consequências. E também já me causou problemas pessoais suficientes.

Posso errar; e com certeza errarei. Mas dela quero manter distância.
Posso até cair na tentação passageira da minha falibilidade humana.

Mas a gente segue tentando.