Sunday, May 31, 2015

Reflexões dominicais I: Entre a dúvida, a fé e os pequenos riscos da vida

"A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê." - Hebreus 11:1

Viver no mundo acadêmico nem sempre é uma tarefa fácil para uma pessoa que advoga algum tipo de crença. Na verdade, dependendo da forma como é encarado, o mundo acadêmico pode ser bastante hostil à fé. Lembro-me de um dos meus primeiros pontos de crise, ainda no princípio da faculdade, nas aulas de Geologia. Falar sobre escalas geológicas para alguém que tinha por convicção que o mundo e o universo tem apenas seis mil anos de idade era como contar uma história para um grupo de melancias. E eu era uma melancia bastante suculenta. Uma das formas de remediar o problema, à época, foi a leitura de autores criacionistas, que com suas fantasiosas palavras, me levavam a um estado de paz comigo mesmo: a sensação de certeza de que no fim das contas, eu estava correto.

Todavia, as dúvidas aumentaram com o tempo. Vieram questões sobre o álcool, a cultura, as vestimentas, sobre o sexo, e posteriormente sobre discussões sociais importantes da nossa era, como o aborto e a homossexualidade. Eu me debrucei sobre todos estes pontos, e para todos, o mais importante era procurar uma resposta que se encaixasse na minha visão de mundo, não importando muito a assertividade destas repostas e o quanto de diálogo elas tivessem com a realidade.

Hoje, muitos anos mais tarde, já entre os primeiros alunos de uma turma de mestrado e de Phd em geofísica, cada uma destas questões parecem apenas borrões na história confusa de uma crença que não era fé, mas apenas medo. Medo de ficar sozinho. Medo do questionamento e do "questionar". Medo de estar errado. E se eu estivesse? Meu mundo cairia e entraria no buraco vazio da infidelidade e na incerteza de uma vida sem absolutos. Lembro-me bem de quando um amigo expôs para mim sua visão sobre a criação do mundo, sobre como ele acreditava que o Gênesis expressa, em suas palavras, verdades psicológicas sobre o homem, em vez de relatos históricos perfeitos. Fui arrogante ao afirmar categoricamente "você está errado". Lá estava meu medo de admitir que "o errado" poderia ser eu. Ainda em outra ocasião, quando um outro amigo, luterano este, me confrontou com alguns "erros" do relato bíblico, respondi imediatamente "você está cego". Senti-me ainda ofendido quando ele disse que "a inerrância das Escrituras é uma falácia".

Tenho para mim que este tipo de atitude diante do questionamento é na verdade a raiz do fundamentalismo e do extremismo em qualquer religião. Por isso acredito que Cirilo, bispo de Alexandria e santo da Igreja, manipulou a milícia cristã para o apedrejamento da filósofa Hipátia, que além de mulher, era cética, e desafiava sua autoridade. Por isso Galileu correu o risco da morte e da perseguição ao desafiar a Igreja com seu modelo heliocêntrico. Tenho para mim que pela mesma razão, Roma perseguiu Lutero e os reformadores quando estes atreveram-se a publicar suas próprias teses. Por esta razão, Miguel Servet, médico, humanista e teólogo, foi queimado na fogueira a mando de João Calvino. Por isso a carnificina da Inquisição (católica e protestante) ocorreu, num frenesi coletivo que conseguiu nada mais que condenar à tortura e mortes horríveis pobres senhoras, curandeiras e parteiras. Por isso, clínicas de aborto e médicos foram atacados por grupos cristãos ainda neste século, produzindo casos como do Dr. George Tiller, morto com um tiro na cabeça em maio de 2009 por terroristas cristãos que o acusavam de assassino sob a lei de Deus. Por isso um advogado californiano propôs, em março de 2015, um projeto de lei chamado "Suspensão Sodomita" que condena à pena de morte todos os homossexuais, relatando no texto que "vendo que é melhor que os infratores morram em vez do que todos nós morramos pela justa ira de Deus contra nós pela loucura de tolerar a maldade no nosso meio, o povo da Califórnia sabiamente, no temor de Deus, comanda que qualquer pessoa que voluntariamente tocar outra pessoa do mesmo sexo para fins de gratificação sexual seja condenado à morte por balas na cabeça ou por qualquer outro método conveniente.". Acredito sinceramente que as atrocidades da fé estão sempre ligadas a uma certa intolerância com o diferente e com quem se dispõe a questionar o pensamento estabelecido. Isso não pode ser fé, mas o seu total e absoluto oposto.


Reunião do grupo racista e terrorista "cristão" Ku Klux Klan. Ao fundo da foto lê-se a frase "Jesus Salva."


Criança de grupo fundamentalista cristão carregando as placas "Deus te odeia" e "Você vai para o inferno".


Líder da Igreja Batista de Westboro carrega placas que dizem "Deus odeia bichas" e "Bichas morrem e Deus ri."








Acima, fotos diversas de instrumentos de tortura utilizados durante a Inquisição cristã.

Ter uma resposta pronta para todas as coisas é uma zona confortável, geralmente muito acolhedora e comunitária, com bancos cheios e música bonita, abraços, afagos, palavras positivas e sempre alguma comida envolvida. Mas o tempo me mostrou que isso não era o suficiente. Não é o suficiente. Na verdade, vim a descobrir anos mais tarde que no fundo, não havia fé. Havia apenas convencimento. O convencimento de que minhas tolas respostas estavam corretas. Simplesmente porque elas precisavam estar. Convencimento de que aquilo que me ensinaram estava correto sobre cada um dos temas da vida. Mas não foi isso que encontrei no caminho da própria vida. No caminho - nos livros, nos jornais, nos bancos da faculdade, nos amigos, na família e no próximo - encontrei pedras. Pedras que clamavam pela minha atenção. Dúvidas que só cresciam, quanto mais tentasse negá-las. E foi só quando mergulhei no seu abismo, e o abracei com toda a força, que pude permitir que o convencimento fosse sepultado e a fé viesse à vida. Aprendi a conviver entre ateus e agnósticos, a amá-los e compreendê-los. Aprendi que ciência e a fé não precisam ser antagônicas, contanto que a fé esteja disposta a ouvir um pouquinho mais. Como diria um famoso pastor, concluí que Adão e Eva somos nós e aprendi que mais importante que o relato bíblico, é o Espírito que o inspira. E que a letra mata, mas o espírito vivifica. Aprendi tantas outras coisas que não caberiam num livro. Mas se pudesse, de todas elas, destacar apenas uma, diria que aprendi que no Getsêmani, Cristo entristeceu-se e a angustiou-se muito, chegando a dizer:

"A minha alma está cheia de tristeza até a morte."



É reconfortante saber que Cristo abraçou sua angústia, e não teve vergonha de expô-la diante de seus semelhantes, ou diante de todos os seus seguidores. Não sabemos o que se passava pela sua mente. Alguns estudiosos dizem que Ele teve dúvida naquele momento, caso contrário, não teria pedido ao Pai "passa de mim esse cálice". Discutível ou não, prefiro crer que Cristo lutou com a dúvida, deixando transparecer seu lado mais humano. Prefiro crer que ali, como Abraão e Sarah, que confrontaram o absurdo da paternidade numa velha idade. Como Jacó, que lutou com o anjo. Como Elias escondido, prostrado ao chão desejando a morte, mesmo após tantas vitórias. Como Jonas, que temendo o chamado, desviou-se do seu caminho. Como estes, prefiro crer que ali Jesus revelou sua humanidade, e lutou com sua própria incerteza. Orou, e vigiou, até que pudesse dizer:

"Pai meu, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade."

Mas o cálice não pode ser passado. Nós precisamos bebê-lo até a última gota para que dele o espírito possa renascer. Só assim o Cristianismo encontrará de fato seu Cristo, e se libertará dos aproveitadores que uivam como lobos raivosos sobre os púlpitos. Hoje eu não tenho medo das perguntas. E quando não posso respondê-las, seja pela ciência, pela história, pela tradição ou pela fé, continuo me debruçando sobre elas e sempre me questionando sobre as respostas "até aqui acumuladas". Estar entre a fé a dúvida é para mim um lugar melhor do que estar entre a fé e o convencimento. Nesse espaço incômodo, mas engrandecedor, pude entender que Deus não pode ser provado em livros ou filmes*. Não apenas "não pode", Deus também não precisa ser provado, apenas crido. E essa é a minha maior prova de fé: que não tenho medo das dúvidas, pois sei que Deus é maior do que todas elas. Mas e se no final eu descobrir que estava errado? Bom, se quando tudo passar, me deparar com o vazio, ou com uma realidade com a qual não esperava, tenho a consciência em paz por saber que por Jesus, o amável, pacífico, caridoso e sábio Jesus, tão raro nos sermões das igrejas mundo afora. Por esse Jesus, vale a pena o risco de se estar errado. Com Ele, todo risco e todas as dúvidas se tornam pequenos. E toda semente, move montanhas.


"Se o Cristianismo for falso, não tem importância. Mas se for verdadeiro, sua importância é infinita." - C.S.Lewis, teólogo anglicano, professor de Oxford e escritor de "As crônicas de Nárnia".

* Fiz essa observação para comentar sobre o filme "Deus não está morto", que achei de péssimo gosto e cuja maior conquista será atrair a maioria dos que já estão próximos e afastar mais a maioria dos que já estão distantes. Recomendo fortemente o filme "Calvário" em seu lugar.


Sunday, May 17, 2015

Crônicas da Alma I: O último inimigo a ser vencido é a morte

O título desta postagem foi citado várias vezes por J. K. Rowling no último livro da série Harry Potter. Parece pueril, mas a passagem vai além de sua relevância dentro de contos juvenis: a frase é atribuída ao Apóstolo Paulo, registrada na carta aos Colossenses, capítulo 15:26. E é essa frase que me incomoda hoje, quando faço meus 26 anos de idade.

Não me incomoda muito que eu ganhe mais um ano, nem que mudanças microscópicas comecem a ocorrer no meu metabolismo. Nem me perturba que há alguns dias eu tenha encontrado meu primeiro cabelo branco. Me incomoda o que passou e o que sei que não vai voltar. Me incomoda quando me lembro do meu primeiro dia de faculdade. Das primeiras amizades da adolescência, hoje tão distantes pelas ocorrências da vida. Me incomoda que meu avô já se foi. Me incomoda que minhas duas avós descansaram. Me incomoda também que três tios já faleceram. Me incomoda que meu pai faz 60 anos esse ano, e que minha mãe já está prestes a se aposentar. Enfim, me incomoda mesmo é que o tempo também traz uma mensagem subliminar, discreta, mas perenemente audível sobre a mortalidade das nossas vidas.

O tempo é um mensageiro mórbido. Pois ali, entre felicitações e abraços, bolos e bolas de soprar, as minhas velinhas estão acesas, esperando serem sopradas para que a chama se apague. Ali o tempo está deixando o seu recado, suave e provocante: "tic tac, tic tac". Ele me lembra dos erros e dos acertos, do que falta conquistar, do que precisa corrigir, de tudo o que já se tem, e infelizmente, de tudo o que um dia se vai perder.


Acredito que pelo peso dessa mensagem, a humanidade tenha sido perspicaz ao tentar lidar com esse mensageiro amargante. Como dizia São Paulo, procuramos nossos rumos para vencer o maior inimigo. Seja por químicas, por remédios, por administrações cirúrgicas, ou pela crença individual. 

Mas e se a morte não for vencível? Alguns me perguntarão. Sinceramente, prefiro não ter uma resposta a esta pergunta. Prefiro que hoje, entre tantas coisas felizes que me aquecem o coração, e tantas palavras carinhosas de amigos tão queridos, eu possa silenciar meus pensamentos e ouvir. Apenas ouvir: "tic tac". Ouvir e refletir. E aprender a valorizar o que realmente vale a pena, e principalmente: quem realmente vale a pena.

Saturday, May 9, 2015

Uma heroína

Acho que só o coração de uma mãe consegue abrigar tantos sentimentos contraditórios. Ao mesmo tempo protege, corrige e afaga. Dá um abraço largo, para logo depois levantar o dedo e sentar-lhe uma bela lição. Pode até gritar de vez em quando, mas não sem depois distribuir "eu te amos".

Talvez "mãe" seja a única pessoa nesse mundo que pode falar coisas duras conosco que não nos ofendemos e "esquecemos" quase que de imediato. Não ligamos porque sabemos que ela é também a única que não dorme em paz se não chegarmos na hora marcada. E que é capaz de mandar mil mensagens enquanto você está em aula ou no trabalho, só pela certeza de ler a resposta: "Estou bem mãe. Não precisa se preocupar." 

Tive, e tenho, o privilégio de ser criado por uma mãe muito especial. Uma que de uma situação de muitas dificuldades, se fez vencedora. "Pagava a conta do telefone num mês, e a mensalidade da faculdade no outro. E assim levei.", ela me confessou um dia.

E levou mesmo. Talvez nem ela se dê conta do quanto isso ficou no seu subconsciente.  E acho que inconscientemente, conseguiu nos transmitir muito bem esse desejo por aprender. Hoje estou aqui, longe dela mais uma vez. E a distância traz muitas saudades. Na minha estante, tem um livro de filosofia, um livro de cálculo, um livro de teologia e alguns artigos sobre engenharia. Tem ainda os rascunhos que estou escrevendo, minha calculadora e as anotações da minha pesquisa. Ah, e é claro. Está ali também a minha bíblia. E eu fico aqui, revirando essas paginas, e pensando se ela tem noção de que as tardes que passávamos na mesa da sala, com ela me ajudando com o "dever de casa", foram a coisa mais importante para me fazer quem sou. Não foi só importante: foi crucial.

Eu não seria metade do que sou sem minha mãe (deixo a outra metade para meu pai). Por isso sou grato por cada correção, cada conselho, cada "puxão" de orelha. Estarão sempre guardadas em mim suas três grandes lições: 

1 - Sempre confie em Deus;
2 - Sempre ame e tenha um bom relacionamento com seus irmãos;
3 - Seja humilde e respeitoso para com todas as pessoas.

Ela será pra sempre minha heroína, personagem quase mítica no meu imaginário. Aquela que não apenas foi instrumento para me dar a vida, mas também me ensinou a caminhar por ela.

Que caminhemos juntos ainda por longos e duradouros anos. 
Eu te amo dona Rita. Feliz dia das mães.