Saturday, November 5, 2016

Leves fardos

Carrego o mundo inteiro no coração. Carrego as lembranças de um jovem que soube na pele, e não sem muita dor, o que é bullying. Carrego as memórias de uma casa cheia onde privacidade era luxo. Carrego nas paredes das recordações o dia em que mostrei para os amiguinhos da escola as fotos da minhas irmãs, ao que pude ouvir orgulhoso a resposta: "as mais lindas". Carrego o dia em que vi meu primo dormindo na cama dos meus pais, e minha mãe dizendo chorosa aos meus ouvidos na calada da noite: "sua tia descansa em Deus". Carrego as tardes assistindo animes e lendo mangás. Carrego as noites jogando RPG com meu irmão e meu primo. Carrego as brincadeiras de rua com primos e primas nas redondezas da casa dos meus avós. Carrego o dia em que li Harry Potter pela primeira vez e me apaixonei. Carrego o dia em que li O Senhor dos Anéis e me apaixonei mais ainda. Carrego o dia em que fui para a roça cedo com meu avô, e as plantações de abóbora, e retirar o leite da vaca, e a loucura de cavalgar um cavalo sem cela. Carrego também o dia em que ele teve seu primeiro AVC, e os meses que se seguiram, em que mais 3 AVCs ocorreriam até que não lhe sobrassem forças para permanecer entre nós. Carrego as aulas que faltei pra cuidar dele. Um jovem de 16 anos que banhava seu avô de 80. Como carrego essas experiências com honra e orgulho! Carrego a infância e a adolescência vividas numa comunidade religiosa em que havia tantos problemas e abusos, e ao mesmo tempo tanto amor sinceramente prestado. Carrego o dia em que passei na faculdade que queria. Não na que era o plano B, mas na que realmente queria. Nunca esquecerei: 17o lugar em Engenharia, quanta alegria! Carrego as semanas de provas, e as durezas, e as rezas com os amigos para passar em Cálculo, depois de exaustivas noites de estudo em claro. Carrego a primeira namorada, e carrego o primeiro amor. Carrego ter partido o coração e ir rente ao chão. Carrego o desejar nunca partir o coração de ninguém. Carrego seis meses de uma tristeza profunda que nunca será  esquecida. E carrego os amigos verdadeiros que ficaram lado a lado quando as trevas pareciam invencíveis. Carrego meu primeiro emprego, em que pude mostrar aos que me rodeavam que havia ali naquele posto de trabalho alguém forjado a ferro e fogo, e que não se furtou dos maiores desafios que lhe foram apresentados. Carrego o dia em que fui embora, e com muita dor, despedi-me de colegas que haviam se tornado muito mais que um time: uma quase-família. Carrego o dia em que fui fazer mestrado fora do país. Carrego os amigos, as experiências, os sofrimentos, as noites em claro revirando os livros de Termodinâmica. Carrego os dias em que, quando aluno de mestrado, fui convidado a lecionar para a graduação, pondo-me à frente de um auditório lotado de rostos e sorrisos dos quatro cantos do mundo. Carrego professores muito especiais. E amigos muito especiais. E irmãos maravilhosos. E irmãs cuidadosas. E tios e tias, de uma forma ou de outra, sempre presentes. Carrego uma avó que me ensinou a amar sem esperar nada em troca. Carrego um pai que me ensinou a ser honesto, e batalhador, e trabalhador. Carrego uma mãe que me ensinou a ser verdadeiro, e correto, e humilde. "Ao chegar num lugar, cumprimente todas as pessoas. Sempre respeite as pessoas.", ela disse muitas vezes. Já sofri e já sorri, já fui perseguido, mas sempre tive por meta nunca perseguir. Já errei, mas também já aprendi. Já quebrei, já trinquei, e já me reergui dos cacos que sobraram. A ferro e fogo e suor e lágrimas. Enfrentando um mundo de preconceitos, e olhares tortos, eu permaneço carregando as delícias de cada dia com muita disposição na mente e fé no coração. Porque cada dia, cada felicidade, cada tristeza, cada sorriso e cada lágrima valem muito a pena e são todos fardos leves e suaves se assim os quisermos encarar. E isso, ninguém pode tirar de mim ou de você. Tenha orgulho daquilo que você carrega. Use a sabedoria adquirida com as experiência ruins para construir as melhores e mais maduras experiências da vida. Creia que de cacos se pode construir castelos. Que cada momento vivido nos faz exatamente o que somos. E que, prevalecendo, continuamos em frente: com muito amor no peito e carregando o mundo no coração.




Saturday, February 27, 2016

A banalidade do mal na política brasileira

Às vezes, eu fico observando as redes sociais e o que rola na minha "linha do tempo" aqui e acolá e fico, sinceramente, preocupado.

O ufanismo nacional-desenvolvimentista (oi?) de parte da esquerda e o conspiracionismo comunista visível apenas à direita bolsonárica me parecem se encontrar num grau de abstração da realidade perverso, ao outro e à humanidade da própria alma. As militâncias, já radicalizadas pelos nervos à flor da pele, não conseguem fazer nada além de diálogos acalorados providos mais de ódio que de raciocínio.

É aquele horrendo ponto em que Paulo Henrique Amorin e Olavo de Carvalho já estão tão iguais que quase não se vê diferença.

Tudo para eles (a militância) é "mito" ou é "lixo" e "bosta" Aparentemente, não sabem utilizar palavras que passem muito desse vocabulário. Tratam o adversário como um inimigo a ser destruído e abatido, e muitas vezes dialogam com teorias e insinuações totalitárias perigosas.

Não tendo argumentos, partem para tudo o que há de mais baixo, vil e desonesto na alma humana, em busca de um ideal, ou suposto "bem maior". Seguem cindindo o país e propagando ódio numa paranoia coletiva ao melhor estilo "João Santana". Tratando pessoas como se unicamente matéria fossem. Ideias divergentes como se "burrice" fossem. Discordâncias como se "iditotice" fossem. Com todo o grau de desrespeito que a (agora mais que comprovadamente falsa) polarização nos ensinou a perpetuar.

Já fiz parte disso tudo, hoje me enojo ante a antigas atitudes.

Hannah Arendt, filósofa alemã que pra mim tem sido de grande inspiração, em suas reflexões sobre a "banalidade do mal", talvez tenha acertado em cheio quando disse que o mal, a níveis como vimos nos regimes totalitários na Europa Ocidental e em regimes comunistas no Leste Europeu, talvez encontre explicação na adesão imediata a irrestrita a ideologias sem a devida e profunda reflexão. Sendo o resultado disto uma transfiguração do ser humano num burocrata ideológico que, em nome de uma causa, poderá fazer, virtualmente, qualquer coisa.
Era esse, segundo Hannah, o argumento de Adolf Eichmann, responsável pela logística de morte do regime nazista, quando do seu julgamento em Jerusalém durante o pós-Guerra.
Para a filósofa (e teorista política), Eichmann se via apenas como um burocrata, alguém que estava cumprindo o seu papel diante de um bem maior. Para a nossa surpresa (ou não), o homem apelidado de "executor-chefe" enxergava-se apenas uma engrenagem a mais na máquina de moer carne do Nazi-fascismo.



Quanto a mim, precisei de um longo período de reflexão para entender que, na vida, e principalmente, na política, a "banalidade do mal" também existe. Ela está bem presente, todos os dias, na minha linha do tempo. Mas ela definitivamente não vale a pena.

Não vale a pena desfazer amizades por ideais divergentes.
Não vale a pena zombar das posições e ideologias democráticas das pessoas.
Não vale a pena incentivar o discurso de ódio.
Não vale a pena gastar o precioso tempo para escrever "textão furioso" na "linha do tempo" dos outros.
Não vale a pena dizer ou afirmar categoricamente coisas que não vi, não ouvi ou sobre as quais não tenho provas (e inclua aqui o "pó" do Aécio e a nuvem de fofocas que envolve as vidas de Lula/FHC).
Não vale a pena perder o senso crítico em nome de um ideal / partido / pensamento / teoria / ideologia.
Não vale a pena olhar apenas para o cisco no olho do meu irmão, deixando passar a trave no meu próprio.
Não vale a pena desmerecer, ridicularizar e escrachar alguém que votou em candidato divergente do meu.
Não vale a pena ir a páginas de políticos democratas com cujas opiniões discordo apenas para vomitar minhas frustrações.
Não vale a pena iniciar uma conversa-debate com a presunção inequívoca de que eu estou absolutamente correto.
Não vale a pena olhar a mim mesmo como baluarte portador da verdade, enquanto para o outro resta apenas a consumação de tudo aquilo que é mais burro, ignorante e descartável.

E por falar em descarte: não! Não vale a pena tratar o imaterial, o humano e todas as emoções e histórias que o envolvem como simples matéria que pode ser jogada fora. Aliás, a frase "é um lixo" me incomoda profundamente, e fico pensando que talvez fosse precisamente este o pensamento dos nazistas em relação aos judeus.

A "banalidade do mal" já nos causou problemas suficientes enquanto humanidade, provando que é capaz de provocar as situações mais terríveis quando levada às últimas consequências. E também já me causou problemas pessoais suficientes.

Posso errar; e com certeza errarei. Mas dela quero manter distância.
Posso até cair na tentação passageira da minha falibilidade humana.

Mas a gente segue tentando.

Sunday, July 19, 2015

Sobre presbiterianos, cerveja e reforma

Algumas semanas atrás eu tive a oportunidade de participar de um encontro de jovens com alguns presbiterianos aqui da cidade. Gosto muito da Igreja Presbiteriana dos EUA. Apesar de me considerar anglicano, o culto presbiteriano é mais parecido com o que estou acostumado no Brasil e a quantidade de pessoas da minha faixa etária é consideravelmente maior. Mas aquele encontro não foi nada usual; nem para os padrões americanos.

A diferença já se anunciou pelo local escolhido para a reunião: uma famosa cervejaria local chamada Otto's, conhecida por comercializar algumas das melhores cervejas da região. A ministra de jovens me deu uma carona e, enquanto dirigíamos a caminho do Otto's, perguntou-me preocupada: "Você bebe?". Ela me abriu um largo sorriso quando respondi "Não bebia, hoje bebo de vez em quando."

Quando finalmente chegamos ao Otto's, nossa grande mesa - composta de um aglomerado mesinhas menores - já estava lotada, e não pude deixar de observar na primeira meia hora de conversa o que parecia ser um padrão entre aquelas pessoas: jovens entre 25 e 30 anos, estudantes de mestrado ou Phd, alguns, como eu, oriundos de outras igrejas, mas definitivamente todos portadores de uma serie de questões não resolvidas sobre a vida, sobre a fé e sobre Deus.

No começo eu achei que seria estranho participar daquilo. Nunca havia me reunido com o pessoal da igreja presbiteriana a não ser no culto matutino de domingo (para onde vou correndo assim que a reunião na igreja anglicana se encerra). Mas eu sabia que os presbiterianos locais, assim como os anglicanos e luteranos, estavam embarcados na recente onda de transformações que está ganhando parte das igrejas americanas. E era nisso que eu estava interessado.

O cristianismo progressista me atrai. Mas já tive experiencias desagradáveis no passado que me fazem muito duvidoso quando em meio a um grupo de cristãos progressistas. Algumas vezes, parece que a reunião é apenas de progressistas e o termo cristão fica esquecido em algum canto da igreja. Então fico observando. Ouvindo, refletindo, até me certificar de que encontrei substancialidade espiritual o suficiente para me sentir confortável - quão julgador e folgado eu sou, não é mesmo?

Mas o resultado daquela reunião me impressionou.


Depois de um super copo de uma cerveja artesanal com um toque de cidra, começaram as apresentações. "Oi, sou Romulo, sou brasileiro, estudante de Mestrado, engenheiro." Vi sorrisos e ouvi boas-vindas dos quatro cantos da mesa; a ainda uma avalanche de perguntas sobre a minha vida. Depois uma outra "visitante" foi apresentada. Ela declarou-se "dissidente" de uma igreja batista local e também recebeu calorosas boas-vindas.

Mais assuntos começaram a surgir, e quando eu esperava o início de uma conversa política e acadêmica tediosa, questões incríveis começaram a brotar das bocas dos meus recém-conhecidos amigos americanos: uma menina de cabelos castanhos falou sobre o racismo no Sul e como algumas denominações eram lenientes com aquele pecado; a bela moça de cabelos loiros e olhos azuis comentou que estava se mudando para outra região conhecida por ser mais conservadora, mas que já havia encontrado uma igreja na área que tinha visões mais progressistas e onde ela poderia cultuar a Deus de acordo com o seu entendimento. O rapaz gay ao meu lado comentou algo sobre estar há algum tempo naquela congregação e o cara "com muito jeito de nerd" do outro lado explicou um pouco sobre rubéola, Deus e o processo evolutivo  (>.<) : mais tarde viria a descobrir que ele tinha um título de Phd.

Depois vieram os comentários mais específicos a respeito de Deus. Os rostos daquelas moças e rapazes preenchidos com uma sensação bastante conhecida minha: a dúvida. Nós falamos sobre como Deus é um mistério que não entendemos. E a ministra de jovens fez um curto discurso.

"Deus é esse mistério que não podemos entender. É como a trindade. Três em um? Um em três? A vida cristã é um mistério. E a vida em si e um mistério. E é isso que tornam ambas bonitas."

Ela tocou no ponto-chave que me faz, dependendo da abordagem, ou me sentir "em casa", ou sair correndo pela porta como se tivesse sido tragado para uma versão evangélica de "The Walking dead". Havia dúvida ali. E a dúvida era permitida. A dúvida era aceita. A dúvida não era um tabu. "Fé sem dúvida não é fé, é convencimento", comentei em algum momento, ao que sorrisos cheios de empatia se abriram para mim novamente. O assunto seguiu: testemunhos foram compartilhados, piadas foram contadas e palavras de encorajamento foram trocadas. Ao final, embora um pouco sonolento com aqueles dois copos enormes  de cerveja, pude ouvir a ministra do outro lado da mesa orando para terminarmos e abençoando a moça loira que estava de partida. Nos despedimos, fomos embora, e eu fiquei com um gosto mais forte do que a cevada na boca. Havia um gosto de Reino que há muito tempo eu não experimentava. Voltei para casa com um pedaço do céu no coração. E aquilo me fez sentir pela primeira vez a densidade da aparente "reforma" sobre a qual há algum tempo tenho falado e ouvido falar.

Dizem que Reforma acontece quando diferentes pessoas em diferentes lugares começam a falar sobre coisas parecidas e revolucionárias.

Lutero falava na Alemanha e Calvino predestinava a Suíça ao paraíso, ao que bispos anglicanos pressionavam por separação da Igreja de Roma. E essa tem sido a percepção de alguns quando observa-se o que tem acontecido na igreja cristã de nossa era: de um lado, um choque cultural muito forte que está levando jovens entre 20 e 30 anos a abandonarem as confissões religiosas em números nunca antes vistos; e de outro, um movimento desses mesmos dissidentes, conhecido no Brasil como desigrejados, movendo-se em direção a praticas religiosas bastante diferentes da ortodoxia convencional.

Para exemplificar o caso dos Estados Unidos, o gráfico abaixo, publicado pelo Barna Group, revela o percentual de pessoas que se identificam como cristãos em cada geração de americanos. Esse gráfico tem assustado pastores, líderes, ministros de jovens, ministros de louvor, pais e mães com um dado gritantemente visível nos bancos das igrejas: uma grande parcela da nova geração, principalmente daqueles entre 16 e 29 anos, está deixando a igreja.

Hoje, cerca de 40% dos jovens americanos entre 16 e 29 não mais se identificam como cristãos. Os Estados Unidos são conhecidos (ou eram) como a maior nação cristã do planeta.

O Barna Group ainda tentou identificar principais razões de tantos jovens deixarem a igreja. Elas foram classificadas em seis categorias:

1 - O caráter controlador das igrejas.

Para a geração emergente, a igreja é super protetora e controladora, utilizando-se de técnicas baseadas no medo. Um quarto dos jovens entre 18 e 29 anos disseram que "os cristãos demonizam tudo fora da igreja" e 22% afirmaram que "a igreja ignora os problemas do mundo real." Ainda, 18% concordaram plenamente com a frase "minha igreja está preocupada demais com filmes, músicas e videogames."

2 - A experiência cristã é rasa

A nova geração acredita que sua experiência com o cristianismo tem sido rasa e diluída. Cerca de 31% disseram que a igreja é entediante. Cerca da 20% daqueles que tiveram alguma experiência com a igreja na adolescência afirmaram que "aparentemente, faltou Deus na minha experiência com a igreja."

3 - A igreja parece ser antagônica à ciência

Uma das maiores percepções da geração de jovens é que a igreja está desatualizada quando o assunto é ciência. Cerca de 35% dos jovens adultos afirmaram que "os cristãos são muito confidentes e pensam que sabem todas as respostas." 30% ainda concordaram que "a igreja está em descompasso com o mundo científico em que vivemos", 25% tinham a percepção de que "Cristianismo é anti-científico" e 23% reconheceram que estavam enfadados do debate "Criacionismo versus Evolucionismo". A pesquisa ainda descobriu que jovens cientistas cristãos estão lutando para se manterem fiéis a suas crenças e ao mesmo tempo a suas funções na indústria científica.

4 -  Jovens cristãos dizem que sua experiência na igreja relacionada à sexualidade foi simplista e julgadora.

Um dos grandes problemas para a geração emergente é como lidar com questões como "pureza sexual" e castidade numa cultura em que as pessoas estão se casando pela primeira vez aos 29 anos e não mais aos 19 anos. 17% dos entrevistados afirmaram "terem cometido erros e se sentirem julgados pela igreja." Entre católicos, 40% dos respondentes afirmaram que "os ensinamentos sobre sexualidade e controle de natalidade da igreja estão desatualizados."

5 - Há um desconforto com a natureza exclusivista do Cristianismo

Cerca de 30% dos jovens cristãos disseram que a igreja "tem medo das crenças de outras confissões" e 22% dos jovens adultos com alguma raiz cristã afirmaram que a "igreja é como um clube: apenas para os que são de dentro."

6 - Mas talvez nenhuma dessas razões seja tão forte e reflita de forma tão evidente a face da geração de cristãos que está fazendo as malas e deixando a igreja: a capacidade de questionar. Advindos de uma ambiente cujo acesso a informação alcançou níveis impressionantes (e continua a crescer), 36% afirmaram não poder fazer, dentro da igreja, "perguntas essenciais sobre a vida". Ainda, 23% afirmaram ter "dúvidas intelectuais sobre a fé.

E se os números dessa pesquisa ainda não acenderam um sinal vermelho na sua mente, talvez os dados seguintes ajudem a entender melhor:

87% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como julgador.
85% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como hipócrita.
78% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como algo desatualizado.
75% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo envolvido demais em política.
91% dos jovens americanos não-cristãos veem o cristianismo como antigay.

Já entre os jovens que se declararam cristãos:

50% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como julgador
50% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como hipócrita
50% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo envolvido demais em política.
33% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como algo desatualizado e desconexo da realidade.
80% dos jovens americanos cristãos veem o cristianismo como antigay.

Há uma luta ocorrendo dentro dos corações de parte da nova geração de cristãos.

E desta luta interna, talvez algumas boas respostas (ou tentativas de se fazer paz com as dúvidas) estejam saindo. E, quem sabe, talvez moldando uma nova forma de cristianismo.

Primeiramente eles se chamava emergentes. E no Brasil, o pensamento ganhou alguns aderentes. Todavia, quando ficou evidente que a mentalidade emergente ainda não alcançava o cerne da questão, outro movimento tomou forma e andou um pouco mais: o novo ramo dentro do Cristianismo não estava questionando a liturgia, nem estava procurando por uma forma de culto mais "Hippie" como aquelas dirigidas por Mark Driscol em sua campanha lamentável. Essa geração estava também questionando a teologia, a igreja, o literalismo seletivo, a ortodoxia e a si próprios. Lutando consigo mesmos sobre as doutrinas da igreja e tendo sérias dificuldades com a incapacidade de a Igreja lidar com o questionamento. 

Obviamente, toda a pesquisa do grupo Barna foi realizada dentro do contexto estadunidense, e com certeza haveria diferenças se a mesma tivesse sido realizada no Brasil. Mas vamos ser sinceros... Acho que essa "luta consigo mesmo" não está restrita a jovens cristãos americanos entre 20 e 30 anos que estão "deixando" a igreja. Afinal, quantos desigrejados brasileiros você conhece? O fenômeno da de transformação do Cristianismo pode parecer algo distante para nossos corações verde-amarelos, mas se observarmos mais atentamente os números, veremos que o percentual de evangélicos sem vínculo institucional saltou de 4% para 14% do número total de evangélicos entre 2003 e 2009.

E se formos sinceros, talvez observemos que, mais do que aparentemente, perguntas como as seguintes tem estado no fundo da mente de muitas pessoas, e às vezes em nossos próprios lábios:

1 - "Se temos 2 bilhões de cristãos no mundo e 5 bilhões de não-cristãos, quer dizer que só da geração contemporânea, teremos no mínimo 5 bilhões de pessoas queimando no inferno? 5 BILHÕES???"

2 - "O que aconteceu com meu amigo Pedro que se suicidou? A ortodoxia evangélica me diz que ele foi para o inferno. Mas a ciência me diz que ele estava doente, tinha depressão."

3 - "Estou namorando há 5 anos, mas não temos condições financeiras de nos casarmos pois só nos formamos na faculdade em 3 anos. Temos um relacionamento sério e estável e nos amamos muito. Nos últimos meses, decidimos manter relações sexuais. Perderemos a salvação por causa disso?"

4 - "Tenho dúvidas quanto aos escritos bíblicos. Será que houve alguma alteração ao longo da história? Será que alguma parte da Bíblia não foi alterada nesses quase 2 mil anos? E quanto ao cânon? Será que não há outros escritos da igreja primitiva que podemos usar?"

5 - "Minha melhor amiga é lésbica. Ela é muito legal e até vai à igreja de vez em quando. Será que ela vai pro inferno por ser lésbica? O pastor está certo quando a chama de abominação?"

6 - "Hoje aprendi sobre as escalas geológicas na aula de Geologia, mas na igreja aprendi que o mundo tem apensas 6 mil anos... Quem está errado nessa história? A Bíblia, a ciência ou a forma como eu interpreto a Bíblia?"

7 - "Hoje minha mãe faleceu. Ela se foi cedo. Teve câncer. Quanta dor. Quanto sofrimento. Deus, você esta aí? Você pode me ouvir? Por que você deixou isso acontecer? Você existe mesmo?"

Se você já se fez pelo menos duas dessas perguntas, talvez tenhamos mais coisas em comum do que pareça. E nós não estamos sozinhos, pois essa "fome e sede" por mudanças tem sido observada em várias partes do mundo e eventualmente produzido mensageiros; quem sabe até mesmo reformadores.

De repente, uma blogueira filha de pastor e crítica do evangelicalismo, chamada Rachel Held Evans, começou a ganhar notoriedade por suas postagens a respeito do literalismo seletivo e da ordenação de mulheres ao ministério. Rob Bell, pastor de uma megaigreja, deixou o ministério para embarcar numa jornada teológica que o levaria a questionar questões intocáveis para os evangélicos: da condenação ao inferno à inerrância das Escrituras. Enquanto isso, em Washington, D.C, Brian McLaren, conhecido pastor e teólogo, celebrava a união homoafetiva de seu filho e caminhava na direção daquilo que ele chama de uma "ortodoxia generosa". Em Denver, uma pastora luterana abre as portas da "Casa para todos os Santos e Pecadores" misturando a teologia luterana com elementos pós-modernos e radical inclusivismo. Em Chicago, um grupo de pastores metodistas iniciavam os trabalhos da frutífera Urban Village Church, numa busca radical por tornar a igreja novamente relevante dentro da sociedade.  Na Carolina do Norte, o Wild Goose Festival, evento cristão alternativo, reúne mais e mais pessoas a cada ano. Não bastasse, a famosa banda de música cristã Gungor - e sua associação "The Liturgists" -  lançava canções que desafiavam bastante a teologia ortodoxa com os títulos "God, our Mother" (Deus, nossa mãe) e "Beautiful Things" (Coisas bonitas). E a lista segue crescendo e vindo de todas as classes, posições políticas, raças e cores. Recentemente, grandes denominações como Luteranos, Presbiterianos e  Episcopalianos (anglicanos) tem, para todos os efeitos linguísticos, "embarcado nessa onda". Acho que vou precisar de escrever uma postagem só para apresentar essas pessoas em mais detalhes (ufa!).


Nadia Bolz-Weber, pastora luterana da igreja Casa para todos os Santos e Pecadores, em Denver, Colorado.


A Banda Gungor tem chocado o mundo evangélico com canções em que se referem a Deus como "Nossa mãe" (na parceria The Liturgists) e em que falam sobre a dúvida e a fé como "Beautiful Things" e "Vapor". (recomendo fortemente que cliquem nos links para as canções)


Um dos pontos de encontro da igreja metodista Urban Village Church, em Chicago. A igreja cresceu muito em pouco tempo e se dividiu em congregações que se reúnem em diferentes localidades de uma das cidades mais seculares dos Estados Unidos.


Congresso da juventude luterana, que tem dado cada vez mais espaço a pregadores como Nadia Bolz-Weber e Shane Claiborne. Se souber falar inglês, vai um vídeo incrível aqui: https://goo.gl/xKFwg2


Brian McLaren, teólogo reconhecido e escritor condecorado, tem sido uma das principais vozes teológicas desse novo cristianismo.


Rob Bell, pastor e escritor, tem desafiado a ortodoxia cristã em seus livros sobre céu, inferno e a danação eterna. Uma de suas maiores obras chama-se "O Amor Vence - Um livro sobre o céu, o inferno e o destino de todas as pessoas que já passaram pela terra"


Rachel Held Evans, escritora estadunidense, é uma blogueira popular e autora o best-seller do New York Times "A Year of Biblical Woomanhood" (Um ano de feminilidade bíblica), em que relata sua experiência de ter seguido, durante um ano, todas as instruções bíblicas destinadas a mulheres. Uma de suas postagens em português pode ser encontrada aqui: http://goo.gl/Lpq7wG


Igreja Episcopal (Anglicana) de São Gregório, em São Francisco, Califórnia. A igreja tem experimentado novas formas de celebração revisitando tradições dos cristãos primitivos.


Eu poderia combinar questões teológicas e litúrgicas, e como elas variam de acordo com o mensageiro para explicar um pouco mais sobre essa aparente reforma - e recomendo novamente o trabalho de Phyllis Tickle sobre o assunto. Mas acho que a experiência que tive com os jovens presbiterianos talvez seja mais explicativa do que qualquer posicionamento teológico que tentasse descrever. Sim, meus amigos, porque ali, sentado à mesa calvinista no Otto's, tomando aquela bela cerveja com toque de cidra, eu pude experimentar em primeira mão esse processo de transformação: havia ali pessoas de todos os tipos, minorias eram bem vindas, a ciência era bem vinda e acima de tudo, perguntas eram muito bem-vindas. O peso da fé inabalável era retirado das costas não só da ministra, como também dos fiéis. Admitir que talvez estivéssemos errados sobre aquilo tudo era "ok". Não acreditar em tudo era apenas "ok". Ali, entre cervejas e orações, entre discussões teológicas e revelações de medo e incerteza. Entre perguntas como "e se eu estiver errado" e "e se eles estiverem certos". Entre falácias pessoais e questões sobre o cristianismo, havia essa sensação de espiritualidade leve no ar; de que por Jesus, valia a pena tentar crer. E que pelos irmãos, valia a pena estar ali. E com a graça de Deus, nós continuamos nos reunindo e eu continuo contando os dias para nosso próximo estudo bíblico.

E torcendo para que ninguém traga Calvino à mesa, obviamente.

Wednesday, July 1, 2015

Todo mundo é um literalista bíblico até que alguém fale sobre a gula



...ou o divórcio, ou a fofoca, ou a escravidão, ou o uso do véu, ou os ensinamentos de Jesus sobre a não-violência, ou a "abominação" de se comer ostras, ou o pecado digno de fogo do inferno de se chamar outras pessoas de idiotas.

Então precisamos de um pouco de contexto.

Então precisamos de um pouco de graça.

Então precisamos de um pouco de espaço para discordar.

Eu comecei a pensar sobre isso depois que fui criticada na semana passada por causa da minha postagem sobre amar as crianças gays incondicionalmente. Algumas pessoas ficaram muito chateadas que eu tenha tido a audácia de escrever um post inteiro do blog falando sobre a necessidade de se colocar um fim ao bullying contra crianças LGBTs sem incluir sequer uma condenação biblicamente embasada contra pessoas LGBTs, ou pelo menos uma discussão teológica em torno da questão da homossexualidade e das Escrituras.

Versículos da Bíblia foram citados. Cartas abertas foram escritas. Previsões do fim dos tempos foram feitas. Travesseiros em minha casa foram jogados a distâncias recordes.

É engraçado. Ontem, no "Superlativos de Domingo" (série de postagens que a autora publica regularmente), eu incluí uma citação de Mark Twain na qual ele se referiu a um vendedor de óleo de cobra como "um idiota", mas ninguém deixou um comentário irritado advertindo-me sobre o fogo do inferno baseado no ensino de Jesus em Mateus 5:22 de que "quem disser ao seu irmão: 'Você não vale nada' será julgado pelo tribunal. E quem chamar o seu irmão de idiota estará em perigo de ir para o fogo do inferno."

Também ninguém levantou objeções bíblicas sobre a gula algumas semanas atrás, quando eu casualmente mencionei ter me engajado numa overdose de iogurte cremoso (morango, com uma pilha de chips de chocolate, pedacinhos de Oreo e bolachas de chocolate em formato animais na parte superior, se você se interessar), ou sobre o materialismo quando eu compartilhei fotos de nosso novo carro. (Ei, para algumas pessoas, um novo Honda Civic pode parecer bastante ostentação.)

E, apesar da enxurrada de e-mails que eu recebo a cada semana condenando o meu apoio à ordenação de mulheres ao ministério, eu nunca recebi algo tão dramático quanto uma carta aberta criticando a minha recusa em usar o véu, apesar de o meu Website estar cheio de provas fotográficas daquilo que o apóstolo Paulo chama de "desgraça" em 1 Coríntios 11: 6.

Podemos rir destes exemplos ou achá-los bobos, mas a linguagem bíblica utilizada nesses contextos é na verdade bastante forte: comer ostras é uma abominação, a cabeça de uma mulher sem véu é uma desgraça, fofoqueiros não herdarão o reino de Deus, palavras descuidadas são puníveis com o inferno, rapazes que olharem para mulheres com desejos lascivos devem arrancar seus olhos.

Caramba, você poderia fazer um belo caso bíblico sobre a gula ser um "estilo de vida pecaminoso", que foi normalizado pela nossa cultura de rodízios e filas transbordantes nos restaurantes self-services, começando com passagens como Filipenses 3:19 ("seu deus é o ventre "), Salmo 78: 18 ("eles tentaram a Deus nos seus corações, pedindo a comida que eles queriam "), Provérbios 23:20 (" não esteja entre os bêbados, nem entre os comilões de carne "), Provérbios 23: 2 ("coloque uma faca na sua garganta se você é dado ao apetite "), ou melhor ainda, Ezequiel 16:49 ("Agora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: ela e suas filhas eram arrogantes, gulosas e despreocupadas, pois elas não ajudaram os pobres e necessitados.")

No entanto, você não vê reuniões de vigilantes do peso antes dos batismos; ou pessoas segurando placas dizendo "Deus condena os Glutões"  do lado de fora dos antros de iniquidade que são as churrascarias.

E nós nem sequer tocamos no materialismo, ou no fato de que no dia em que eu enchi minha cara de iogurte cremoso, 30.000 crianças morreram de doenças evitáveis ​​e muitas mais passaram fome.

Parece que quanto mais onipresente a violação bíblica, mais invisível ela se torna.

Então, por que tantos cristãos se concentram nos chamados "versículos-gritantes" relacionados à homossexualidade, ignorando os "versículos-gritantes" relacionadas à gula ou à ganância, ao uso do véu ou ao divórcio? Por que é que a homossexualidade é o grande debate bíblico desta década e não a escravidão (como já foi um dia), ou o crescente problema do materialismo e da desigualdade? Por que tantos defendem que o casamento gay seja ilegal, mas não o divórcio, quando Jesus nunca fez referência ao primeiro, mas falou bastante negativamente sobre o segundo?

Embora existam certamente questões hermenêuticas e culturais importantes em atuação, eu não posso deixar de me perguntar se também não há  algo mais nefasto em curso. Eu não posso deixar de me questionar se talvez a condenação bíblica seja muitas vezes um jogo de números.

Embora ela afete mais pessoas do que nós tendamos a perceber, estatisticamente, a homossexualidade afeta muito menos de nós do que a gula, o materialismo, ou o divórcio. E como Jesus disse tantas vezes em seu ministério, nós gostamos de focar nas violações bíblicas (reais ou percebidas) de grupos  minoritários, em vez das nossas próprias.

Em suma, nós gostamos atacar em bando. Nós gostamos de produzir armas usando os versos que nos afetam menos e, em seguida, atacamos grupos minoritários com elas. Ou melhor ainda, evocamos alguma linguagem sentimental sobre falar a verdade em amor pouco antes de pegar nossas pinças removedoras de ciscos que nos ajudam a desviar nossas mentes das traves desconfortáveis ​​em nossos próprios olhos.

Vemos isso na história dos líderes religiosos que encurralaram a mulher apanhada em adultério. Ela era um alvo tão fácil: uma mulher, provavelmente pobre, sem poder, e culpada do escândalo favorito dos fariseus: o pecado sexual. Quando eles a trouxeram a Jesus, estavam usando-a como um exemplo para testá-lo; para ver quão "bíblica" a resposta dEle seria. (Veja Deuteronômio 22:14-23) Jesus ajoelhou-se e rabiscou na areia antes de dizer: "Aquele que estiver sem pecado pode atirar a primeira pedra." Eles deixaram cair suas pedras.

Enquanto evitar o farisaísmo certamente afeta nosso literalismo seletivo, também temos boas razões para não condenar uns aos outros pelas violações bíblicas onipresentes (novamente, reais ou percebidas) em nossa cultura.

É difícil para mim simplesmente condenar o divórcio, por exemplo, quando eu conheço várias mulheres cujas vidas e as vidas de seus filhos podem ter sido salvas por ele, ou quando eu ouço pessoas me dizerem que prefeririam ter saído de um lar disfuncional do que ter crescido num. Temos ainda uma repulsa natural à ideia de verificar o Índice de Massa Corporal das pessoas antes de aceitá-las em nossas igrejas, especialmente quando a obesidade não é necessariamente um reflexo da gula e quando nós sabemos por nossa própria experiência ou pelas experiências daqueles que amamos que um peso não saudável pode resultar de uma variedade de fatores - de componentes genéticos a psicológicos - e quando alguns dos nossos amigos favoritos (ou quando nós mesmos) lutamos com uma relação complicada com a comida, seja através de comer em excesso ou da má alimentação.

Novamente, é um jogo de números. É difícil "outrificar" as pessoas que conhecemos e mais amamos. Parece clichê, mas tudo muda quando é seu irmão ou irmã que se divorcia, quando é o seu filho ou filha que é gay, quando é o seu melhor amigo que luta com algum vício, quando é o seu marido ou esposa fazendo algumas boas perguntas sobre o Cristianismo a respeito das quais você nunca pensou antes. Nossos relacionamentos têm uma tendência de destruir nossas categorias, de derreter o preto e o branco em cinza, e eu não acho que Deus se sinta desapontado ou ameaçado por isso. Acho que Deus espera isso. Foi o que aconteceu a Pedro quando ele encontrou Cornélio e com Felipe quando ele encontrou o eunuco etíope. De repente, torna-se muito mais difícil de rotular seus amigos como "impuros" ou "indignos".

Afinal, quando Deus se fez carne e habitou entre nós, os religiosos o acusaram de sair com os "pecadores" (até mesmo glutões!) sem nunca perceber que este era o ponto da questão: de que havia apenas "pecadores" com quem sair.

Claro, tudo isso levanta questões sobre quando é certo ou errado "chamar a atenção" para o pecado, e eu confesso que eu não sou boa em resolver isso. Eu sou tão hipócrita quanto qualquer um, julgando aqueles que considero julgadores, com senso de justiça própria, indulgente, fofoqueira, muito descuidada com minhas palavras, muito rápida para ficar com raiva de certas pessoas com certos pontos de vista teológicos, muito facilmente seduzida pelo dinheiro e notoriedade e ... por minhas coisas favoritas em todo o mundo ... LISTAS DE PRÊMIOS! RECONHECIMENTOS!

Eu também preciso lembrar que, apesar de toda a minha grande conversa sobre a "hermenêutica Cristocêntrica," mais frequentemente do que pareça, eu estou seguindo uma "hermenêutica Rachelcêntrica" quando leio a Bíblia, com meus próprios preconceitos, preferências, inseguranças e opiniões guiando como eu vou "pegar e escolher." (Oh, eu posso manejar cada versículo da Bíblia que desafia o Calvinismo como uma faca, mas eu preferiria não falar sobre como eu estou realmente aplicando o Sermão da Montanha em minha própria vida ou sobre o que eu realmente penso sobre amar os inimigos.)

Deveríamos parar de discutir quais instruções bíblicas aplicam-se aos dias de hoje e como devemos aplicá-las? Certamente não. Deveríamos permanecer em silêncio enquanto os vulneráveis ​​são oprimidos e explorados ou enquanto a injustiça e imoralidade permeiam nossa cultura? Não. Será que devemos abandonar as nossas convicções sobre o que a Bíblia diz que é pecado? Não, nem mesmo quando discordamos sobre elas. As perguntas retóricas estão sendo usadas em demasia em postagens de blogs? Sim.

Mas às vezes é bom lembrarmo-nos que, assim como os proprietários de escravos cristãos tinham interesse em interpretar Colossenses 3:22 literalmente, nós também tendemos a "pegar e escolher" aquilo da Bíblia que é melhor para nossa própria vantagem.

E quando fazemos categorias separadas para os "pecadores de verdade", quando nós reduzimos nossos companheiros humanos a questões teológicas sob constante debate, ao ponto em que eles não podem nem mesmo ouvir que são amados sem alguma ressalva (de "verdade em amor"); quando nossa hermenêutica convenientemente faz dos outros o problema e de nós os heróis, talvez seja o momento de nos sentarmos à mesa e conhecermos uns aos outros um pouco mais, quebrar algumas categorias e fazer novos amigos. Talvez seja o momento de deixar as pedras caírem por um pouco e passar o pão.

... saudável, integral e orgânico, é claro.


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Para saber mais sobre o literalismo seletivo, mas com um toque divertido, confira o meu livro, A Year of Biblical Woomanhood.

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Traduzido e adaptado por Romulo Rodrigues de Carvalho do texto original de Rachel Held Evans: http://rachelheldevans.com/blog/bible-clear
Todos os direitos reservados.

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Rachel Held Evans, escritora estadunidense condecorada, é uma blogueira popular e autora de livros como Faith Unraveled e do best-seller do New York Times A Year of Biblical Woomanhood. Escreveu recentemente a obra-prima Searching for Sunday. Rachel foi destaque no The Washington Post, The Guardian, Christianity Today, The Huffington Post, CNN e BBC. Ela mora com seu esposo Dan em Dayton, Tennessee. Conheça mais do seu trabalho em: http://rachelheldevans.com


Wednesday, June 10, 2015

Por que um "Jesus travesti" incomoda tanto?

Não. Ela não estava representando Jesus. Também não houve cenas de destruição de imagens, ou casos apavorantes de impalamento de crucifixos. Houve apenas uma travesti encenando uma crucificação. Sobre o seu madeiro, uma inscrição dizia "Basta de homofobia." Sua mensagem era clara: o preconceito também mata e também crucifica. Mas sua crucificação ganhou as redes sociais e foi alvo de um repúdio vociferante daqueles que se auto declaram escolhidos legítimos de Deus. Pessoas que provavelmente não dedicaram o mínimo de tempo para refletir sobre o significado da crucificação.
Milhares de pessoas foram crucificadas durante o Império Romano. A crucificação era um método comum de se eliminar indivíduos que haviam se tornado inconvenientes para a sociedade: ladrões, arruaceiros, assassinos, rebeldes e, em alguns casos, pobres e proeminentes pregadores da Palestina, cuja mensagem trazia escândalo por tratar de assuntos como amor, caridade, autonegação, justiça, perdão, ganância, cobiça, e um certo Reinos dos Céus que para o homem comum soava como loucura e blasfêmia. Já naquele domingo, sete de Junho, na parada gay de São Paulo, a travesti representava toda a exclusão sofrida por minorias sexuais. Ali, sobre o solo sagrado da capital nacional do Capital, sua imagem ensanguentada sobre uma cruz nos lembrava que, como Jesus, ainda hoje, em nossa sociedade, existem pessoas excluídas, privadas de respeito humano e que sofrem. Ela não representava Jesus, ela representava a dor.
E quantos crucificados já tivemos em campanhas midiáticas, não é mesmo? Houve, por exemplo, a mostra de imagens do artista cubano Erik Ravelo,  em que crianças apareciam simbolicamente crucificadas por problemas sociais como o abuso infantil, a má alimentação e o tráfico de órgãos. Em outro caso, o cidadão brasileiro foi "crucificado" na capa da revista Veja pelos altos impostos que corroem sua renda. Na paródia da crucificação, até mesmo o jogador Neymar padeceu sobre o madeiro na capa da revista Placar. (Essas e uma série de outras campanhas publicitárias podem ser visualizadas aqui: http://goo.gl/n1bW9n)


Mas não houve postagens de famosos pastores em redes sociais por causa dessas crucificações. Não houve revolta ou comoção social. Não houve larga divulgação ou acusações pesadas e constantes de sacrilégio, provocação, profanação ou falta de respeito. Nas timelines do Facebook não saltaram às vistas mensagens como "Nossa, que absurdo!", ou "Que blasfêmia!". Apenas um silêncio e uma concordância azeda impecáveis de uma sociedade que ainda não entendeu nem o sentido da cruz, nem do Cristo.
A cruz é um objeto de execução do mundo antigo presente em diferentes culturas, línguas e nações. Um objeto de morte que sobreviveu ao tempo como um sinal de esperança para a humanidade. O Novo Testamento revela que pela cruz, Deus reconciliou consigo todas as coisas. O pastor Rob Bell informa que o mistério que revela a essência da reconciliação de todas as coisas com Deus está no fato de que a morte sobre a cruz tornou-se o canal direto através do qual o amor de Deus flui para todas as pessoas.
Já o Cristo foi aquele que sobre seus ombros vestiu a morte para que a vida pudesse ser acessível a todos. E essa é a mensagem do evangelho, da Rude Cruz: que Cristo morreu por todo e cada ser humano, para que todo e cada ser humano pudesse ter acesso a Deus, por perdão e por graça. O Apóstolo São Paulo nos alerta que por um homem, Adão, todos os homens foram condenados. Mas ele também nos diz que por outro homem, o segundo Adão, todos os homens foram salvos. O profeta Isaías diz que o Cristo, como cordeiro pascal, tomou sobre si nossas dores. São Tomás de Aquino indicou a cruz como caminho pelo qual o sofrimento pode aperfeiçoar a paciência de todos os homens. Martinho Lutero coloca que sobre a cruz, Cristo tornou-se o que Ele não era (homem), para que os homens se tornassem aquilo que eles também não eram (filhos de Deus). Sobre a cruz, Deus fez-se pecador como nós. E nosso sofrimento tomou forma humana. O próprio Cristo identificou-se intimamente com aqueles que sentem dor ao comparar-se ao estrangeiro em terra desconhecida, ao prisioneiro carente de visitas, ao pequenino que passa fome, ao homem necessitado de roupas. Ele foi profundo ao afirmar que qualquer um que ajudasse a estes pequeninos estariam na verdade ajudando ao próprio Jesus.

Sobre os ombros do Senhor, naquele madeiro, muitos sofrimentos se reuniram e muitas dores se acumularam. Ali, de braços abertos, Ele se doou pelo pobre e pelo rico, pelo negro e pelo branco. Todo sofrimento, toda dor e toda esperança humana experimentaram em um homem a redenção da cruz. E esta é a consciência de muitos em nossa sociedade: de que Jesus morreu por todos nós. Por esta razão a representação de crianças crucificadas não nos causa revolta, mas antes nos adverte do sofrimento dessas crianças: todos nós um dia fomos crianças, ou teremos crianças. Por isso a visão de um Neymar crucificado chega a nossos olhos com um ar de empatia ou apenas um desgosto leve: todos gostaríamos de ser um rico jogador de futebol. Por isso o cidadão crucificado pelos altos impostos nos comove: ele nos lembra nosso próprio sofrimento e nossa sensação de impotência diante da extorsão impalatável do nosso suado trabalho. Mas poucos são aqueles que conseguem ver o sofrimento de uma travesti quando esta se encontra prostrada sobre uma cruz. Muito pelo contrário: veem abominação e calúnia, pois na travesti, não conseguem enxergar humanidade.  Pouquíssimos são aqueles que conseguem compreender o sofrimento de uma pessoa transgênero. E dificilmente alguém gostaria de ser uma. Ser jogador de futebol dá status, ser travesti dá problemas, e muitas vezes morte.

Nas travestis não nos vemos e não nos encontramos. Nelas não conseguimos observar a mesma matéria espiritual e transcendente que vive em nós. Para muitos, não são pessoas, mas bonecas sem sentimentos que habitam apenas as esquinas de pontos de prostituição. Nelas não enxergamos sofrimento ou dor. Não seriam dignas de tal piedade ou caridade; compaixão ou amor; aceitação ou amizade, simpatia ou empatia. Não são dignas nem mesmo do valor mais sagrado de uma sociedade (pseudo)cristã: a cruz e o seu Cristo. Pô-las junto a uma imagem sagrada se torna profano pelo ato em si, a despeito de seu profundo significado, sobre o qual não estamos nem um pouco dispostos a refletir. Por elas, Ele não morreu. E para elas, não haverá igreja, nem comunhão dos santos, nem perdão dos pecados, nem ressurreição dos mortos, nem vida eterna. Caso entrassem em muitas igrejas, seriam indelicadamente convidadas a se retirar, pois para o cristianismo fundamentalista, Deus está no negócio de dizer quem é perfeito o suficiente para entrar; e quem tem a lista de atributos qualificantes para pertencer. Ser uma travesti o exclui imediatamente desta lista. Aliás, qual foi a última vez que você viu uma travesti entrar numa igreja? Ela, inclusive, será muito sortuda se ao menos atingir a idade em que poderá assumir-se como transgênero e integrar a lista dos que estão de fora; como tantos outros crucificados pela sociedade. Segundo uma pesquisa divulgada pela Universidade da Califórnia em conjunto com o Instituto Americano para Prevenção de Suicídios, apenas nos Estados Unidos (país em que hoje 60% da população apóia o casamento gay), um número incrível de 41% da população trans já tentou cometer suicídio em algum momento da vida (http://goo.gl/Sk1PtX). Muitos não suportam a pressão sofrida em decorrência daquilo que são: imagine viver num estado de constante rejeição social; conflitos internos e externos.

Assim, a "travesti Jesus" se torna profana, não por invocar a imagem religiosa, mas por simplesmente ser travesti. Um Jesus travesti incomoda porque para muitos é perturbador pensar que por ela, o Cristo Redentor da humanidade também tenha morrido: ela não é humanidade; é melhor que seja deixada de fora, junto com os outros indesejáveis. Sua crucificação pela sociedade fica palpavelmente evidente, e a paródia do Jesus travesti se torna escandalosamente real.

Mas ainda há uma boa notícia: houve outro que também foi odiado pelo simples fato de ser quem era. Ele contrariou o coração dos homens, e a ordem social imposta. Fariseus religiosos, que não entram no Reino de Deus e nem deixam que outros entrem, cuspiram nele também, e o fizeram símbolo de maldição. Houve outro sobre quem a multidão, cheia de ódio, gritou de forma horrenda e desumana: "Crucifica-o! Crucifica-o!" e ainda "Tem que matar! Só matando". Olhem para o lado e verão que não estão sozinhas. Da cruz o Senhor lhes diz: "estarão comigo no paraíso." Jesus as ama profundamente, e o sacrifício expiatório também foi por cada uma de vocês.

De um amigo anglicano desconhecido, que nutre por vocês um falho amor cristão.

Sunday, May 31, 2015

Reflexões dominicais I: Entre a dúvida, a fé e os pequenos riscos da vida

"A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê." - Hebreus 11:1

Viver no mundo acadêmico nem sempre é uma tarefa fácil para uma pessoa que advoga algum tipo de crença. Na verdade, dependendo da forma como é encarado, o mundo acadêmico pode ser bastante hostil à fé. Lembro-me de um dos meus primeiros pontos de crise, ainda no princípio da faculdade, nas aulas de Geologia. Falar sobre escalas geológicas para alguém que tinha por convicção que o mundo e o universo tem apenas seis mil anos de idade era como contar uma história para um grupo de melancias. E eu era uma melancia bastante suculenta. Uma das formas de remediar o problema, à época, foi a leitura de autores criacionistas, que com suas fantasiosas palavras, me levavam a um estado de paz comigo mesmo: a sensação de certeza de que no fim das contas, eu estava correto.

Todavia, as dúvidas aumentaram com o tempo. Vieram questões sobre o álcool, a cultura, as vestimentas, sobre o sexo, e posteriormente sobre discussões sociais importantes da nossa era, como o aborto e a homossexualidade. Eu me debrucei sobre todos estes pontos, e para todos, o mais importante era procurar uma resposta que se encaixasse na minha visão de mundo, não importando muito a assertividade destas repostas e o quanto de diálogo elas tivessem com a realidade.

Hoje, muitos anos mais tarde, já entre os primeiros alunos de uma turma de mestrado e de Phd em geofísica, cada uma destas questões parecem apenas borrões na história confusa de uma crença que não era fé, mas apenas medo. Medo de ficar sozinho. Medo do questionamento e do "questionar". Medo de estar errado. E se eu estivesse? Meu mundo cairia e entraria no buraco vazio da infidelidade e na incerteza de uma vida sem absolutos. Lembro-me bem de quando um amigo expôs para mim sua visão sobre a criação do mundo, sobre como ele acreditava que o Gênesis expressa, em suas palavras, verdades psicológicas sobre o homem, em vez de relatos históricos perfeitos. Fui arrogante ao afirmar categoricamente "você está errado". Lá estava meu medo de admitir que "o errado" poderia ser eu. Ainda em outra ocasião, quando um outro amigo, luterano este, me confrontou com alguns "erros" do relato bíblico, respondi imediatamente "você está cego". Senti-me ainda ofendido quando ele disse que "a inerrância das Escrituras é uma falácia".

Tenho para mim que este tipo de atitude diante do questionamento é na verdade a raiz do fundamentalismo e do extremismo em qualquer religião. Por isso acredito que Cirilo, bispo de Alexandria e santo da Igreja, manipulou a milícia cristã para o apedrejamento da filósofa Hipátia, que além de mulher, era cética, e desafiava sua autoridade. Por isso Galileu correu o risco da morte e da perseguição ao desafiar a Igreja com seu modelo heliocêntrico. Tenho para mim que pela mesma razão, Roma perseguiu Lutero e os reformadores quando estes atreveram-se a publicar suas próprias teses. Por esta razão, Miguel Servet, médico, humanista e teólogo, foi queimado na fogueira a mando de João Calvino. Por isso a carnificina da Inquisição (católica e protestante) ocorreu, num frenesi coletivo que conseguiu nada mais que condenar à tortura e mortes horríveis pobres senhoras, curandeiras e parteiras. Por isso, clínicas de aborto e médicos foram atacados por grupos cristãos ainda neste século, produzindo casos como do Dr. George Tiller, morto com um tiro na cabeça em maio de 2009 por terroristas cristãos que o acusavam de assassino sob a lei de Deus. Por isso um advogado californiano propôs, em março de 2015, um projeto de lei chamado "Suspensão Sodomita" que condena à pena de morte todos os homossexuais, relatando no texto que "vendo que é melhor que os infratores morram em vez do que todos nós morramos pela justa ira de Deus contra nós pela loucura de tolerar a maldade no nosso meio, o povo da Califórnia sabiamente, no temor de Deus, comanda que qualquer pessoa que voluntariamente tocar outra pessoa do mesmo sexo para fins de gratificação sexual seja condenado à morte por balas na cabeça ou por qualquer outro método conveniente.". Acredito sinceramente que as atrocidades da fé estão sempre ligadas a uma certa intolerância com o diferente e com quem se dispõe a questionar o pensamento estabelecido. Isso não pode ser fé, mas o seu total e absoluto oposto.


Reunião do grupo racista e terrorista "cristão" Ku Klux Klan. Ao fundo da foto lê-se a frase "Jesus Salva."


Criança de grupo fundamentalista cristão carregando as placas "Deus te odeia" e "Você vai para o inferno".


Líder da Igreja Batista de Westboro carrega placas que dizem "Deus odeia bichas" e "Bichas morrem e Deus ri."








Acima, fotos diversas de instrumentos de tortura utilizados durante a Inquisição cristã.

Ter uma resposta pronta para todas as coisas é uma zona confortável, geralmente muito acolhedora e comunitária, com bancos cheios e música bonita, abraços, afagos, palavras positivas e sempre alguma comida envolvida. Mas o tempo me mostrou que isso não era o suficiente. Não é o suficiente. Na verdade, vim a descobrir anos mais tarde que no fundo, não havia fé. Havia apenas convencimento. O convencimento de que minhas tolas respostas estavam corretas. Simplesmente porque elas precisavam estar. Convencimento de que aquilo que me ensinaram estava correto sobre cada um dos temas da vida. Mas não foi isso que encontrei no caminho da própria vida. No caminho - nos livros, nos jornais, nos bancos da faculdade, nos amigos, na família e no próximo - encontrei pedras. Pedras que clamavam pela minha atenção. Dúvidas que só cresciam, quanto mais tentasse negá-las. E foi só quando mergulhei no seu abismo, e o abracei com toda a força, que pude permitir que o convencimento fosse sepultado e a fé viesse à vida. Aprendi a conviver entre ateus e agnósticos, a amá-los e compreendê-los. Aprendi que ciência e a fé não precisam ser antagônicas, contanto que a fé esteja disposta a ouvir um pouquinho mais. Como diria um famoso pastor, concluí que Adão e Eva somos nós e aprendi que mais importante que o relato bíblico, é o Espírito que o inspira. E que a letra mata, mas o espírito vivifica. Aprendi tantas outras coisas que não caberiam num livro. Mas se pudesse, de todas elas, destacar apenas uma, diria que aprendi que no Getsêmani, Cristo entristeceu-se e a angustiou-se muito, chegando a dizer:

"A minha alma está cheia de tristeza até a morte."



É reconfortante saber que Cristo abraçou sua angústia, e não teve vergonha de expô-la diante de seus semelhantes, ou diante de todos os seus seguidores. Não sabemos o que se passava pela sua mente. Alguns estudiosos dizem que Ele teve dúvida naquele momento, caso contrário, não teria pedido ao Pai "passa de mim esse cálice". Discutível ou não, prefiro crer que Cristo lutou com a dúvida, deixando transparecer seu lado mais humano. Prefiro crer que ali, como Abraão e Sarah, que confrontaram o absurdo da paternidade numa velha idade. Como Jacó, que lutou com o anjo. Como Elias escondido, prostrado ao chão desejando a morte, mesmo após tantas vitórias. Como Jonas, que temendo o chamado, desviou-se do seu caminho. Como estes, prefiro crer que ali Jesus revelou sua humanidade, e lutou com sua própria incerteza. Orou, e vigiou, até que pudesse dizer:

"Pai meu, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade."

Mas o cálice não pode ser passado. Nós precisamos bebê-lo até a última gota para que dele o espírito possa renascer. Só assim o Cristianismo encontrará de fato seu Cristo, e se libertará dos aproveitadores que uivam como lobos raivosos sobre os púlpitos. Hoje eu não tenho medo das perguntas. E quando não posso respondê-las, seja pela ciência, pela história, pela tradição ou pela fé, continuo me debruçando sobre elas e sempre me questionando sobre as respostas "até aqui acumuladas". Estar entre a fé a dúvida é para mim um lugar melhor do que estar entre a fé e o convencimento. Nesse espaço incômodo, mas engrandecedor, pude entender que Deus não pode ser provado em livros ou filmes*. Não apenas "não pode", Deus também não precisa ser provado, apenas crido. E essa é a minha maior prova de fé: que não tenho medo das dúvidas, pois sei que Deus é maior do que todas elas. Mas e se no final eu descobrir que estava errado? Bom, se quando tudo passar, me deparar com o vazio, ou com uma realidade com a qual não esperava, tenho a consciência em paz por saber que por Jesus, o amável, pacífico, caridoso e sábio Jesus, tão raro nos sermões das igrejas mundo afora. Por esse Jesus, vale a pena o risco de se estar errado. Com Ele, todo risco e todas as dúvidas se tornam pequenos. E toda semente, move montanhas.


"Se o Cristianismo for falso, não tem importância. Mas se for verdadeiro, sua importância é infinita." - C.S.Lewis, teólogo anglicano, professor de Oxford e escritor de "As crônicas de Nárnia".

* Fiz essa observação para comentar sobre o filme "Deus não está morto", que achei de péssimo gosto e cuja maior conquista será atrair a maioria dos que já estão próximos e afastar mais a maioria dos que já estão distantes. Recomendo fortemente o filme "Calvário" em seu lugar.


Sunday, May 17, 2015

Crônicas da Alma I: O último inimigo a ser vencido é a morte

O título desta postagem foi citado várias vezes por J. K. Rowling no último livro da série Harry Potter. Parece pueril, mas a passagem vai além de sua relevância dentro de contos juvenis: a frase é atribuída ao Apóstolo Paulo, registrada na carta aos Colossenses, capítulo 15:26. E é essa frase que me incomoda hoje, quando faço meus 26 anos de idade.

Não me incomoda muito que eu ganhe mais um ano, nem que mudanças microscópicas comecem a ocorrer no meu metabolismo. Nem me perturba que há alguns dias eu tenha encontrado meu primeiro cabelo branco. Me incomoda o que passou e o que sei que não vai voltar. Me incomoda quando me lembro do meu primeiro dia de faculdade. Das primeiras amizades da adolescência, hoje tão distantes pelas ocorrências da vida. Me incomoda que meu avô já se foi. Me incomoda que minhas duas avós descansaram. Me incomoda também que três tios já faleceram. Me incomoda que meu pai faz 60 anos esse ano, e que minha mãe já está prestes a se aposentar. Enfim, me incomoda mesmo é que o tempo também traz uma mensagem subliminar, discreta, mas perenemente audível sobre a mortalidade das nossas vidas.

O tempo é um mensageiro mórbido. Pois ali, entre felicitações e abraços, bolos e bolas de soprar, as minhas velinhas estão acesas, esperando serem sopradas para que a chama se apague. Ali o tempo está deixando o seu recado, suave e provocante: "tic tac, tic tac". Ele me lembra dos erros e dos acertos, do que falta conquistar, do que precisa corrigir, de tudo o que já se tem, e infelizmente, de tudo o que um dia se vai perder.


Acredito que pelo peso dessa mensagem, a humanidade tenha sido perspicaz ao tentar lidar com esse mensageiro amargante. Como dizia São Paulo, procuramos nossos rumos para vencer o maior inimigo. Seja por químicas, por remédios, por administrações cirúrgicas, ou pela crença individual. 

Mas e se a morte não for vencível? Alguns me perguntarão. Sinceramente, prefiro não ter uma resposta a esta pergunta. Prefiro que hoje, entre tantas coisas felizes que me aquecem o coração, e tantas palavras carinhosas de amigos tão queridos, eu possa silenciar meus pensamentos e ouvir. Apenas ouvir: "tic tac". Ouvir e refletir. E aprender a valorizar o que realmente vale a pena, e principalmente: quem realmente vale a pena.